Fausto Martin de Sanctis
é juiz do Tribunal Regional Federal da 3ª Região e escritor.
* Publicado no jornal Folha de S. Paulo - 11/03/2012
Sugerindo que juízes de 1º grau teriam alguma incapacitação, o privilégio deixa nichos sociais impunes; investigações longe do local do crime perdem eficácia
A falta de vocação dos tribunais para os casos de prerrogativa de foro tem redundado em resultados pífios. Alimenta a impunidade (e a certeza desta) e coroe valores democráticos.
Para alguns, a prerrogativa seria válida por envolver altas autoridades. São mais de mil pessoas dos três poderes beneficiadas. Mas, em uma democracia, privilégios só se justificam se o fim for o de igualar.
Os "não julgamentos" equivalem a uma imunidade branca (normatização fictícia), consagrando nichos sociais que se mantêm à margem da lei. Esse tipo de "técnica" provoca erosão da harmonia legislativa.
O crime e sua impunidade fomentam um curioso microssistema jurídico-penal, no qual potenciais criminosos desejam concessões de juízes que apenas cumprem tecnicamente as suas funções.
Por outro lado, para atingir a prescrição, eles seguidamente renunciam e assumem novamente cargos políticos, alterando sucessivamente quem deve julgar os seus processos. Um vaivém entre tribunais e varas criminais sem fim. Verdadeira dessacralização da lei penal.
A ciência do direito encontra lar permanente na comunidade jurídica desde que se valha de preceitos apenas dela oriundos. Isso significa um conjunto ordenado e sistemático de princípios e regras, ou seja, uma forma de apontar soluções e jamais abraçar algo que atente contra a justiça dos procedimentos.
Ora, a persistir a fraude (alternância dos cargos) e a inabilidade dos tribunais, perceptível dada à habilidade intuitiva de boa parte da população, maculados estarão direitos e deveres. Esse desequilíbrio sistêmico tem exigido das cortes a delegação da produção da prova penal a juízes de primeira instância, pois, salvo melhor juízo, reconhecem uma expertise que lhes é própria.
Além disso, difícil existir eficácia quando investigações de autoridades federais se concentram em Brasília, não no local do eventual crime.
Se útil fosse a prerrogativa de foro, tolhida estaria a ampla defesa já que o julgamento não se submete ao duplo grau de jurisdição.
Propugna-se, ainda, sua extensão para ações de improbidade administrativa contra as mesmas autoridades sujeitas a tal prerrogativa, muitas investigadas por corrupção.
A incompatibilidade entre foro por prerrogativa e eficácia é cabalmente demonstrada pelas estatísticas. Apenas uma pequena percentagem das ações penais abertas no Supremo desde 1998 foi julgada.
Por isso, deve-se refletir tal instituto e a ideia de ampliá-lo para ex-ocupantes de cargos políticos (PEC 358/05), pois traduzem, na prática, um modo de legislar em causa própria, com efeito devastador à regra de que a lei a todos submete. A igualdade é um plus ao Estado social.
O privilégio induz à crença de que juízes de primeiro grau sofreriam de uma espécie de incapacitação. Se inabilitados fossem, por que teriam condições para julgar policiais, agentes fiscais e do Banco Central, defensores públicos, vereadores e toda a população? Bill Clinton foi julgado nos EUA pela primeira instância.
A amplitude da prerrogativa de foro não possui paralelo. Reforçá-la lembra a conhecida teoria do criador de Brás Cubas sobre a equivalência das janelas -abre-se uma, fecha-se outra-, obtendo os privilegiados a rarefação do ar, alentadora compensação para qualquer suposta hostilidade. As palavras que socorrem parte de seus defensores deixam de revelar, conforme o dedo de William Shakespeare (Hamlet), "muitas coisas" existentes entre o céu e a terra.